1. O regime jurídico aplicável aos CLIAs: as MPs 230/2006 e 612/2013 e a Portaria RFB 143/2020
A MP 320/2006 e a MP 612/2013 tiveram a sua vigência encerrada em 15.12.2006 e em 1º.8.2013, respectivamente, e, com isso, surgiram dúvidas sobre o regime jurídico aplicável aos Centros Logísticos e Industriais Aduaneiros (CLIAs) constituídos durante a sua vigência.
Tais MPs foram editadas com o objetivo de reestruturar o modelo anterior de exploração dos serviços de movimentação e armazenagem de mercadorias sob controle aduaneiro – que eram outorgados mediante licitação e em regime de exclusividade aos chamados “portos secos” (art. 2º da Lei nº 9.074/1998).
O novo modelo criado pela MP 320/2006 (e, posteriormente, reeditado por meio da MP 612/2013) eliminou a necessidade de procedimento licitatório prévio para o desenvolvimento dessas atividades. Os recintos alfandegados passaram a ser denominados CLIAs, que são constituídos por meio de simples licença e estão sujeitos a alteração mediante simples requerimento à RFB.
Com a eliminação de entraves burocráticos, pretendia-se ampliar as possibilidades de alfandegamento, inclusive no que se refere à expansão da área alfandegada, favorecendo a livre iniciativa e a livre concorrência.
Nesse sentido, o art. 17 da MP 612/2013 dispunha:
Art. 17. Fica vedada a concessão de licença para exploração de Centro Logístico e Industrial Aduaneiro em Município abrangido no edital da licitação correspondente ao contrato de permissão ou concessão com fundamento no inciso VI do caput do art. 1º da Lei nº 9.074, de 1995, durante a vigência do contrato.
§1º O disposto neste artigo não impede a transferência de outros estabelecimentos que operam na área geográfica abrangida pelo edital para o regime de licença, na forma do art. 15.
§2º O disposto no caput não se aplica na área geográfica onde o interessado na obtenção de licença para exploração de Centro Logístico e Industrial Aduaneiro, mediante Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica, comprove haver:
I – demanda por serviços de movimentação e armazenagem de mercadorias em recinto alfandegado insuficientemente atendida pela infraestrutura disponível em regime de permissão ou de concessão;
II – crescimento da demanda por serviços de movimentação e armazenagem de mercadorias em recinto alfandegado que indique a necessidade de rápida ampliação da oferta de infraestrutura alfandegada; ou
III – crescimento econômico da região com influência sobre a área geográfica que aponte potencial demanda por serviço em áreas ou infraestrutura alfandegadas não disponíveis.
Em relação à possibilidade de ampliação, a MP 320/2006 previa que:
Art. 7º Compete ao Secretário da Secretaria da Receita Federal outorgar a licença para exploração de CLIA e declarar o seu alfandegamento, em ato único.
[…]
§ 5º Atendidos os requisitos técnicos e operacionais definidos nos termos do art. 2º e após a respectiva comprovação perante a Secretaria da Receita Federal e os órgãos e agências da administração pública federal que atuem no local, a área alfandegada poderá ser ampliada ou reduzida dentro de uma mesma estrutura armazenadora que seja compartilhada no armazenamento de mercadorias nacionais.
Confirmando o regime flexível de autorização dos CLIAs e de utilização de áreas próximas a esses recintos no âmbito da mesma autorização, o Secretário Especial da RFB editou a Portaria RFB 143/2020 dispondo sobre a ampliação dos CLIAs.
Conforme o art. 33 dessa Portaria:
Art. 33. A solicitação de alteração de característica física ou operacional de local ou recinto alfandegado, como ampliação, redução, anexação ou desanexação de área de pátio, armazém, silo e tanque, tipo de carga movimentada ou armazenada no local, operação aduaneira autorizada ou dimensão de área demarcada para operação em regime aduaneiro especial, deverá ser formalizada pela interessada de acordo com as disposições do art. 27, no que couber.
Portanto, tanto as MPs quanto a Portaria RFB 143/2020 garantiam aos titulares dos recintos alfandegados a possibilidade de alterações na área caso atendidos os requisitos técnicos e operacionais aplicáveis e definidos pela própria RFB
2. A ultratividade dos efeitos das MPs 230/2006 e 612/2013
Embora a MP 320/2006 tenha sido rejeitada pelo Senado Federal e a MP 612/2013 tenha tido sua vigência encerrada sem conversão em lei (Atos
Declaratórios 1/2006 e 49/2013), as relações jurídicas estabelecidas durante a sua vigência continuam sendo regidas pelas próprias MPs.
Como a vigência das MPs se encerrou sem que o Congresso Nacional regulamentasse as relações jurídicas constituídas no período, aplica-se ao caso o disposto no §3º e no §11 do art. 62 da Constituição Federal:
Art. 62.
[…]
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
[…]
§ 11 Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
Ou seja, uma vez que o Congresso Nacional deixou de regulamentar as relações jurídicas decorrentes de atos praticados durante a vigência das MPs, tais relações são, por disposição constitucional, regidas pelas próprias MPs.
Essa presunção não existe por acaso. Trata-se de medida necessária para conferir segurança jurídica às relações firmadas durante a vigência das MPs, assegurando a preservação do ato jurídico perfeito e do direito adquirido configurados na vigência das normas.
O art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com as alterações introduzidas pela Lei 13.655/2018, dispõe que “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.
Dessa forma, para todos os efeitos, as disposições contidas nas MPs 320/2006 e 612/2013, bem como nos respectivos regulamentos da RFB, permanecem sendo aplicáveis aos CLIAs constituídos quando as MPs estavam vigentes.
3. A possibilidade de alteração da área alfandegada: o entendimento da PGFN
A possibilidade de alterar a área do recinto alfandegado mediante simples requerimento à RFB é parte do regime jurídico assegurado pela constituição do CLIA no período de vigência das MPs. Para isso, basta que sejam atendidos os requisitos técnicos e operacionais aplicáveis, definidos genericamente pela RFB para todos os recintos alfandegados, e comprovado o cumprimento de tais requisitos perante a RFB.
Tal afirmação deriva de entendimento formalizado pela própria PGFN no sentido da possibilidade de alteração da área alfandegada de um CLIA. A PGFN confirmou essa possibilidade ao esclarecer a interpretação equivocada que a Nota Técnica Cosit 11 havia dado ao Parecer PGFN/CJU/COJLC 1.609/2014.
Ao responder a uma consulta sobre regras aplicáveis aos CLIAs (tema do parecer), a Nota Técnica havia consignado que somente seria possível alterar, aumentar ou diminuir um CLIA constituído com base na MP 320/2006 (mas não com base na MP 612/2013).
A Nota Técnica foi submetida à análise da PGFN para que confirmasse se o entendimento adotado contrariava ou não o exposto no Parecer PGFN/CJU/COJLC 1.609/2014 (art. 13 da Lei Complementar 73/1993).
A resposta foi objeto do Parecer PGFN/CAT 304/2017, com o reconhecimento de que o entendimento da Nota Técnica contrariava a manifestação anterior da PGFN e as normas aplicáveis aos CLIAs.
De acordo com a PGFN:
3.1. O último questionamento formulado pela Receita Federal do Brasil se refere a ampliação da área construída do CLIA e a necessidade de que tal medida seja submetida a Receita Federal do Brasil. Sobre o tema vale a transcrição do disposto no artigo 7º, § 5º da Medida Provisória nº 320, de 2006:
Art. 7º Compete ao Secretário da Secretaria da Receita Federal outorgar a licença para exploração de CLIA e declarar o seu alfandegamento, em ato único.
[…]
§ 5º Atendidos os requisitos técnicos e operacionais definidos nos termos do art. 2º e após a respectiva comprovação perante a Secretaria da Receita Federal e os órgãos e agências da administração pública federal que atuem no local, a área alfandegada poderá ser ampliada ou reduzida dentro de uma mesma estrutura armazenadora que seja compartilhada no armazenamento de mercadorias nacionais.
32. O objetivo da criação dos CLIAs foi ampliar a possibilidade de alfandegamento a fim de favorecer o comércio exterior no Brasil e fomentar a livre iniciativa e livre concorrência, como pode ser observado na leitura da exposição de motivos da Medida Provisória nº 320, de 2006. Vale a transcrição de um trecho da referida exposição de motivos:
3. A Medida Provisória introduz, ainda, uma série de modificações na legislação aduaneira com o objetivo de simplificar controles e eliminar entraves burocráticos, agilizando a logística do comércio exterior e reduzindo custos.
4. Atualmente, os Portos Secos estão subordinados ao regime de permissão e concessão de serviços públicos, sem que seus serviços, sequer, estejam arrolados no art. 21, XII da Constituição Federal.
5. Esse modelo jurídico encontra-se em profunda crise, impedindo a ampliação da oferta dos serviços de movimentação e armazenagem de mercadorias para importadores e exportadores, pois esse modelo, baseado em concessões e permissões de serviço público, não se coaduna com a natureza própria daquelas atividades, que são tipicamente de exploração privada, que além de demandarem rápidas modificações na capacidade operacional dos recintos e até mesmo mudanças locacionais para atender a demanda, incompatíveis com o atual modelo jurídico.
33. O trecho da exposição de motivos deixa bem clara a dinâmica que se pretendeu dar aos CLIAs, permitindo sua rápida modificação para agilizar a logística do comércio exterior, como nos casos de mudança de capacidade operacional e mesmo de localização, contudo, sempre submetido ao atendimento de requisitos técnicos e operacionais, como previsto no art. 34, da Lei nº 12.350, de 2010. Uma vez que tal faculdade é concedida aos CLIAs com base na Medida Provisória nº 320, de 2006, entendemos que o mesmo regime legal deve ser aplicado aos CLIAs regulados pela Medida Provisória nº 612, de 2013, a fim de garantir igualdade de condições para empresas que atuam no mesmo ramo de atividade empresarial e sob a mesma natureza jurídica.
Portanto, a PGFN garante aos CLIAs constituídos pela MP 320/2006 e pela MP 612/2013 a faculdade de relocalização, ampliação ou redução do recinto alfandegado.
4. Ainda a possibilidade de alteração da área alfandegada: o entendimento do Poder Judiciário
Os Tribunais também admitem a ultratividade da MP 320/2006 e da MP 612/2013 para preservar as situações iniciadas durante sua vigência:
ADMINISTRATIVO. LICENCIMENTO PARA EXPLORAÇÃO DE CENTRO LOGISTICO E INDUSTRIAL ADUANEIRO – CLIA. MEDIDA PROVISÓRIA N.º 320/2006. REVOGAÇÃO. VIGÊNCIA. INEXISTÊNCIA LEGISLAÇÃO
POSTERIOR. Consoante o artigo 62, §§ 3° e 11, da Constituição Federal, a Medida Provisória não convertida em lei no prazo legal continua regendo as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a sua vigência, ante a ausência de decreto legislativo dispondo em contrário. (…) (TRF4, AC 5006343-36.2014.404.7000, Quarta Turma, rel. Des.ª VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, j. 26.8.2014).
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. MP 612/2013. REJEIÇÃO PELO CONGRESSO
NACIONAL. EFEITOS. Conforme dispõe o art. 62, §11 da Constituição Federal, a Medida Provisória rejeitada pelo Congresso Nacional continua a reger as relações jurídicas iniciadas durante a sua vigência se não houver legislação posterior válida disciplinando a matéria. (TRF4, APELREEX 5012772-50.2013.4.04.7001, Quarta Turma, rel. Des. LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, j. 26.03.2014).
Ao tratar de pedido de relocalização de CLIA (constituído com base na MP 612/2013) formulado pela Multilog Sul Armazéns Gerais Ltda., o TRF-4ª Região consignou a possibilidade de ampliação ou redução de área do recinto. Tal reconhecimento se deu a propósito de ação que a Multilog ajuizou requerendo a alteração do seu CLIA, localizado em Curitiba/PR, para outro endereço, em São José dos Pinhais/PR.
Naquele feito, o Tribunal considerou que “a área alfandegada poderia ser ampliada ou reduzida, mas não relocalizada” (AC 5042833- 18.2018.4.04.7000 – grifou-se). No que se refere à possibilidade de ampliação ou redução da área do CLIA, o entendimento do TRF-4ª Região é coerente com aquele adotado no Parecer PGFN/CAT 304/2017, mas não o é em relação à questão da relocalização.
A diferença de entendimento em relação à PGFN se deve ao fato de que, segundo a decisão, a relocalização “implicaria inauguração de ‘novo procedimento de licenciamento’, tarefa esta impossível em razão da cessação dos efeitos da MP nº 612 de 2013″. De todo modo, tanto a decisão quanto o parecer estão de acordo com que um eventual pedido de ampliação não ensejaria a instauração de novo procedimento de licenciamento – sendo plenamente possível para um CLIA.
5. Conclusão
Os dispositivos constitucionais que regulamentam as relações jurídicas constituídas durante a vigência de medida provisória (art. 62, §§ 3º e 11, da Constituição Federal) garantem aos CLIAs constituídos pelas MPs 320/2006 e 612/2013 a possibilidade de alteração da área alfandegada.
Tal afirmação é confirmada pelo entendimento da PGFN e do Poder Judiciário sobre a questão (especialmente no que se refere à faculdade de ampliação ou redução da área alfandegada).