A imprescindível análise de impacto regulatório (AIR)
1. A Lei 14.478/2022
A Lei 14.478 foi publicada no final de 2022 e entrará em vigor em 21.6.2023 (180 dias período de vacância, contados na forma da LC 95/1998 – art. 8º, §1º¹). A norma legal estabelece determinadas regras sobre a atuação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, exigindo a autorização prévia pelo órgão federal que ficará responsável pela regulação de tais atividades².
2. A natureza principiológica da Lei 14.478
Do exame da Lei 14.478 verifica-se que se trata de norma de natureza eminentemente principiológica. Ela estabelece diretrizes e princípios gerais a serem considerados para a regulação das atividades das prestadoras de serviços de ativos virtuais, mas não chega a definir de modo concreto e objetivo as formas e o modo de regulação.
A principal consequência disso consiste na amplitude da competência regulatória atribuída à entidade que será responsável pela regulação.
3. Algumas previsões relevantes
A despeito de eminente principiológica, é possível desde logo extrair algumas previsões relevantes para a regulação da atividade de prestação de serviços de ativos virtuais.
3.1. Não aplicação aos ativos representativos de valores mobiliários
Em primeiro lugar, a Lei ressalva expressamente que não incidirá sobre os ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385/1976 (art. 1º, parágrafo único). As atividades relacionadas a esses ativos permanecem sob a competência regulatória e fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários.
3.2. A exigência de autorização prévia
A Lei 14.478 define que o funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais no País depende de autorização prévia por órgão ou entidade da Administração Pública Federal que ficará responsável pela regulação de tais atividades (art. 2º). Prevê-se que determinadas situações poderão se submeter a procedimento de autorização simplificado (art. 2º, parágrafo único).
3.3. Uma definição de ativo virtual
O art. 3º da Lei 14.478 estabelece que será considerado ativo virtual
“representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”.
Ficam expressamente excluídos do conceito: moeda nacional e moedas estrangeiras, moeda eletrônica (regulada pela Lei 12.865), instrumentos de acesso a produtos, serviços e benefícios (programas de pontos, recompensas e fidelidade) e representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento específicos, como valores mobiliários e ativos financeiros. Evidentemente, ao excluir tais categorias do conceito de ativos virtuais, a Lei assegurou que tais ativos permanecessem sob o regime regulatório que sobre eles já incide atualmente.
Caberá ao regulador estabelecer quais são os ativos financeiros regulados (art. 3º, parágrafo único).
3.4. As diretrizes estabelecidas pela Lei 14.478
O art. 4º da Lei 14.478 estabelece as diretrizes a serem observadas na prestação de serviço de ativos virtuais, conforme parâmetros a serem definidos pelo regulador.
Dentre essas diretrizes, estão: (i) livre iniciativa e livre concorrência; (ii) boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos; (iii) segurança da informação e proteção de dados pessoais; (iv) proteção e defesa de consumidores e usuários; (v) proteção à poupança popular; (vi) solidez e eficiência das operações; e (vii) prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais.
Trata-se de valores de inequívoca relevância, ainda que de natureza geral. A forma e modo de atendimento – ou seja, como serão as regras que serão estabelecidas para dar cumprimento a tais valores – serão definidos pelo órgão regulador.
3.5. A definição de prestador de serviços virtuais
A definição de prestador de serviços virtuais é dada pelo art. 5º, que estabelece como sendo “a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços de ativos virtuais: I – troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira; II – troca entre um ou mais ativos virtuais; III – transferência de ativos virtuais; IV – custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais; ou V – participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais”.
Em linhas gerais, o prestador de ativos virtuais, será aquele que executar troca, custódia ou transferência de ativos virtuais ou instrumentos de controle sobre ativos virtuais em nome de terceiros ou participar de serviços financeiros relacionados à emissão e venda de ativos virtuais.
Outras atividades relacionadas poderão ser objeto de autorização pelo regulador (art. 5º, parágrafo único).
3.6. As competências da entidade reguladora
A Lei estabelece as competências da entidade reguladora no art. 7º. Elas compreendem: (a) autorizar funcionamento, transferência de controle, fusão, cisão e incorporação da prestadora de serviços de ativos virtuais; (b) estabelecer condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários e contratuais em prestadora de serviços de ativos virtuais e autorizar a posse e o exercício de pessoas para cargos de administração; (c) supervisionar a prestadora de serviços de ativos virtuais e aplicar as disposições da Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017, em caso de descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação; (d) cancelar, de ofício ou a pedido, as autorizações de que tratam os incisos I e II deste caput; e (e) dispor sobre as hipóteses em que as atividades ou operações de que trata o art. 5º desta Lei serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão submeter-se à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País.
Trata-se de competências relativamente amplas, cuja interpretação dependerá muito da regulamentação da Lei 14.478.
3.7. A incidência do Código de Defesa do Consumidor
A Lei define de modo expresso que incidem sobre as operações no mercado de ativos virtuais as disposições do CDC (art. 13). Afinal, mesmo sendo sujeitas a regulação específica, tais atividades podem também configurar relações de consumo, que deverão observar todas as determinações e diretrizes do CDC.
A previsão é muito relevante especialmente no que se relaciona à imposição de dever de transparência para o consumidor do serviços, ampla publicidade e proteção contra previsões contratuais abusivas. A questão certamente irá gerar ampla discussão.
3.8. Instituições já reguladas pelo Banco Central
Com relação às instituições financeiras e demais instituições que já são reguladas pelo Banco Central, a Lei definiu que estas poderão prestar exclusivamente o serviço de ativos virtuais ou cumulá-lo com outras atividades, na forma a ser regulada pela entidade reguladora (art. 8º).
É possível que essas entidades tenham que cumprir requisitos menos rígidos do que as demais prestadoras de serviços virtuais, justamente por já serem obrigadas a atender outras exigências impostas pela regulação das atividades que elas já prestam, submetendo-se às lei e regulação expedida pelo Bacen. Em qualquer caso, a prestação do serviço de ativos virtuais por essas instituições deverá se submeter à regulação que for editada pelo regulador federal a ser indicado na forma da Lei 14.478.
4. A futura (e imprescindível) regulamentação da Lei
Será imprescindível a regulamentação da Lei 14.478. A grande maioria de suas previsões remete à necessidade de regulamentação, seja por ato do Executivo como por parte da entidade reguladora. A própria definição da entidade que será responsável pela regulação da atividade de prestação de serviços de ativos virtuais depende de regulamentação por decreto do Executivo (art. 6º).
O quadro abaixo resume os pontos e temas que terão que ser objeto de regulamentação por decreto e aqueles temas que deverão ser objeto de regulação pela entidade reguladora.
Regulamentação por Decreto | Edição de normas regulatórias pela entidade reguladora |
Definição do órgão ou entidade da Administração Pública Federal que será competente para regular e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais – art. 6º | Definição de procedimento simplificado de autorização -art. 2º, parágrafo único |
Regulamentação da Lei 14.478 para concretizar as diretrizes e previsões nela contidas, que deverão ser observadas pela futura entidade reguladora. | Definição dos ativos virtuais que estarão sujeitos à regulação – art. 3º, parágrafo único; |
Definição dos parâmetros (modo e forma) para cumprimento das diretrizes do art. 4º. | |
Autorização de outros serviços relacionados à prestação de serviços de ativos virtuais – art. 5º parágrafo único. | |
Definição das hipóteses de cancelamento de autorização e procedimento a ser observado – art. 7º, parágrafo único. | |
Regulamentação a ser aplicada às instituições financeiras e outras instituições reguladas pelo Banco Central caso pretendam prestar serviços de ativos virtuais – art. 8º | |
Definição dos prazos e condições para adequação das prestadoras de ativos virtuais que estiveram em atividade – art. 9º |
5. A imprescindibilidade da análise de impacto regulatório (AIR)
A regulamentação da Lei 14.478 deverá ser precedida de análise de impacto regulatório (AIR).
5.1. A imposição da AIR
A AIR está expressamente prevista no art. 5º da Lei 13.874/2019 e no art. 6º da Lei 13.848/2019 (Lei das Agências):
Art. 5º As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.
Art. 6º A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados serão, nos termos de regulamento, precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo.
Nos termos do art. 3º do Decreto 10.411, “A edição, a alteração ou a revogação de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional será precedida de AIR”.
As normas a serem expedidas para a regulamentação da Lei 14.478 e regulação do setor de prestação de serviços de ativos virtuais não se enquadram em nenhuma das hipóteses que permitem a dispensa da AIR (art. 2º, §2º e art. 4º)
5.2. O entendimento do Banco Central
Conforme reconhece o Banco Central,
“A AIR é uma ferramenta para melhoria da qualidade regulatória que traz maior robustez técnica para subsidiar a tomada de decisão. Trata-se de um processo sistemático de análise baseado em evidências que busca avaliar, a partir da definição de um problema regulatório, os possíveis impactos das alternativas de ação disponíveis para alcance dos objetivos pretendidos. A AIR é, portanto, uma análise realizada antes da edição da norma”³.
6. Momento da realização da análise de impacto regulatório
A AIR deve ser realizada antes da edição das normas regulamentadoras ou regulatórias. No caso da Lei 14.478, haverá dois momentos que exigirão a realização de AIR.
6.1. Necessidade de consideração quando da edição do decreto regulamentador
Por um lado, a edição do decreto regulamentador da Lei 14.478 exigirá a realização de AIR, caso ele ultrapasse a mera indicação da entidade que ficará responsável pela regulação dos serviços de ativos virtuais.
Se o decreto se limitar a estabelecer essa previsão e indicação, incidirá a exceção prevista no art. 3º, §2º, inc. I, do Decreto 10.411, por se tratar de ato de organização dos órgãos do Executivo federal, sem repercussão direta sobre os regulados.
Mas se o decreto avançar sobre a definição concreta relativamente às diretrizes e hipóteses de incidência da Lei 14.478, haverá necessidade de realização de AIR prévia.
6.2. Imposição de realização para a edição de normas regulatórias
Por outro lado, a edição de normas regulatórias (tais como as mencionadas no quadro acima, no item 4) exigirá a realização de AIR pela entidade reguladora, observando todos os parâmetros e requisitos do Decreto 10.411.
Não há razão para se dispensar a AIR nesse caso, na medida em que envolverá a edição de “atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados” (art. 3º, do Decreto 10.411).
Ressalte-se, mais uma vez, que não se verificam os requisitos para a dispensa de AIR na regulamentação da Lei 14.478. Nenhuma das hipóteses do art. 3º, §2º estão presentes.
Tampouco estão configuradas as situações do art. 4º, do Decreto 10.411. O quadro a seguir sistematiza a inexistência de tais hipóteses.
Previsão | Hipótese | Razões pela qual não se aplica |
Art. 4º, inc. I | urgência | Não há urgência. A Lei previu largo período de vacância e as questões estão sob discussão há muito tempo. |
Art. 4º, inc. II | ato normativo destinado a disciplinar direitos ou obrigações definidos em norma hierarquicamente superior que não permita, técnica ou juridicamente, diferentes alternativas regulatórias | Não há norma estabelecendo as previsões que serão objeto de regulação. Há diferentes alternativas regulatórias para concretizar as diretrizes da Lei. |
Art. 4º, inc. III | ato normativo considerado de baixo impacto | Os atos normativos gerarão impacto significativo nos agentes do setor e usuários e consumidores dos serviços de ativos virtuais. |
Art. 4º, inc. IV | ato normativo que vise à atualização ou à revogação de normas consideradas obsoletas, sem alteração de mérito; | Não há normas precedentes a serem atualizadas. |
Art. 4º, inc. V | ato normativo que vise a preservar liquidez, solvência ou higidez:a) dos mercados de seguro, de resseguro, de capitalização e de previdência complementar;b) dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio; ouc) dos sistemas de pagamentos; | Não há necessidade de se preservar de imediato a liquidez, solvência e higidez dos mercados financeiros, de capitais e de câmbio ou dos sistemas de pagamento. A regulamentação dos serviços de ativos virtuais está em discussão há muito tempo e a previsão normativa de dispensa da AIR aplica-se apenas àqueles atos normativos considerados urgentes e que visem a preservar a liquidez, solvência e higidez de tais setores ante a circunstâncias extraordinárias ou supervenientes. Caso negativo, nenhum ato normativo do sistema financeiro que tivesse relação com tais aspectos seria precedido de AIR – o que não corresponde à realidade. |
Art. 4º, inc. VI | ato normativo que vise a manter a convergência a padrões internacionais | Não há (ainda) padrões internacionais aplicáveis no caso de ativos virtuais. |
Art. 4º, inc. VII | ato normativo que reduza exigências, obrigações, restrições, requerimentos ou especificações com o objetivo de diminuir os custos regulatórios | Não há qualquer exigência a ser reduzida. Os atos normativos regulatórios é que irão estabelecer originalmente as exigências regulatórias. |
Art. 4º, inc. VIII | ato normativo que revise normas desatualizadas para adequá-las ao desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, | Não há normas desatualizadas a serem revisadas. |
7. Conclusões
Portanto, a regulamentação da Lei 14.478 exigirá a realização de análise de impacto regulatório, tanto previamente à edição do decreto regulamentador, como previamente à edição das normas regulatórias da atividade pela entidade que for indicada como reguladora pelo Decreto do Executivo. Trata-se de exigência imposta pelo art. 5º da Lei 13.874/2019, pelo art. 6º da Lei 13.848/2019 e pelo Decreto 10.411/2020. A AIR deverá ser ampla e exauriente e atender aos requisitos estabelecidos pelo Decreto 10.411.
A única hipótese em que se poderia considerar dispensada a AIR seria no caso de o Decreto regulamentador se limitar a definir a entidade que será responsável pela regulação da atividade (tal como previsto no art. 6º, da Lei 14.478), sem ingressar no mérito da regulação ou na concretização das diretrizes dadas pela Lei 14.478. Se avançar nesses temas, o Decreto deverá também se precedido de análise de impacto regulatório.
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¹§ 1o A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.
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²A Lei 14.478 estabelece que “Ato do Poder Executivo atribuirá a um ou mais órgãos ou entidades da Administração Pública federal a disciplina do funcionamento e a supervisão da prestadora de serviços de ativos virtuais” (art. 6º). Cogita-se no mercado que o referido órgão deverá ser o Banco Central do Brasil, mas essa circunstância somente será confirmada quando da edição do decreto que irá regulamentar a Lei.
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³https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/analise_impacto_regulatorio. Acesso em 27.2.2023.