O início da vigência é um dos temas centrais atinentes a uma lei nova que introduza modificações radicais em setores relevantes da vida social. É usual que seja estabelecida uma vacatio legis prolongada, para permitir que as novas normas sejam analisadas, que a doutrina se manifeste e que os operadores jurídicos adquiram o conhecimento necessário à plena aplicação.
Esperava-se um prazo mais dilatado para uma nova Lei de Licitações, destinada a revogar a polêmica Lei 8.666/1993.
No entanto, o art. 194 da Lei 14.133/2021 determinou vigência imediata. Por outro lado, as leis anteriores permanecem em vigor por dois anos, prazo durante o qual a Administração pode optar por sua utilização.
Tratou-se de uma solução técnica intrigante, que atribui à autoridade administrativa a competência para escolher o regime jurídico aplicável a futuras licitações e contratações.
Na verdade, essa autonomia do administrador não existe. Porque a vigência da Lei 14.133 não significa a sua eficácia. Embora em vigor, a referida Lei não é aplicável em virtude de obstáculos intransponíveis.
O primeiro e mais evidente impedimento se relaciona com o Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP. A criação desse sítio eletrônico foi prevista no art. 174. Destina-se a promover a publicidade de todos os atos pertinentes a licitações e contratações públicas, a operar como plataforma para licitações e a armazenar bancos de dados contendo uma enorme quantidade de informações. É uma espécie de COMPRASNET multiplicado por mil vezes. E quem opera com o COMPRASNET sabe o que isso significa.
O art. 54 da Lei 14.133 determinou que “A publicidade do edital de licitação será realizada mediante divulgação e manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP)”. Isso significa que nenhuma licitação subordinada à Lei 14.133 poderá ser realizada sem a divulgação do edital no PNCP.
Ocorre que o PNCP não existe concretamente. Segundo informação prestada por Carmen Silvia Lima de Arruda (Sancionada a nova Lei de Licitações: em que pé estamos”, JOTA, 2.4.2021), “Estima-se que até o final de 2021 o Portal estará em funcionamento…”.
Portanto, a Lei 14.133 não terá eficácia pelo menos até o final de 2021.
Quer dizer, mais ou menos.
Pode-se defender que o art. 54 da Lei 14.133 impõe a exigência da divulgação do edital no sítio eletrônico oficial ou no veículo oficial de divulgação dos atos administrativo do ente federativo. Isso significa reconhecer que a determinação contemplada no art. 54 não implica a necessidade da divulgação do edital apenas e exclusivamente no PNCP – uma figura presentemente não existente. Trata-se de assegurar o pleno e amplo conhecimento de todos os interessados, pelos meios materiais e tecnológicos disponíveis. Logo e até o momento em que o PNCP tornar-se operacional, a publicidade exigida no art. 54 far-se-ia pelos meios admitidos como juridicamente válidos.
Por outro lado, a exigência de divulgação de atos administrativos estaduais e municipais em um determinado Portal, instituído em lei federal, infringe a autonomia dos demais entes federativos. A disciplina sobre a publicidade dos próprios atos é uma dimensão inafastável da organização federativa do Estado. Cabe a cada ente federativo determinar o modo de publicidade de seus atos.
Logo, o art. 54 da Lei 14.133 configura uma norma não-geral. Trata-se de uma regra aplicável apenas à órbita da União. Cada Estado, o Distrito Federal e os Municípios dispõem de competência insuprimível para dispor sobre a publicidade dos editais de licitação promovidos no seu âmbito.
Assim, é válido que os demais entes federativos disponham sobre a publicidade na sua imprensa oficial ou em sítios eletrônicos próprios. Nesse ponto, o veto aposto ao § 1° do art. 54 foi irrelevante. O dispositivo previa o cabimento de os demais entes federativos disporem sobre a publicidade dos editais de licitação. O veto foi irrelevante porque o dispositivo era, por assim dizer, meramente declaratório de uma competência instituída constitucionalmente.
Desse modo, é imaginável que a Lei 14.133 adquira eficácia no âmbito de Estados, Distrito Federal e Municípios. Para tanto, basta aplicar as regras de que os editais de licitação devem ser publicados no órgão de imprensa oficial local. A União não pode usurpar competência constitucional dos demais entes federativos – ressalvada a hipótese de uma inovação legislativa que restrinja a determinação do art. 54 da Lei 14.133 ao âmbito federal.
Mas há outros problemas para a plena eficácia da Lei 14.133. Diversos dispositivos necessitam de regulamentação. Existem mais de quarenta artigos que aludem à regulamentação.
A Lei 14.133 dispôs de modo muito sumário sobre o procedimento licitatório. As suas regras sobre modalidades de licitação e sobre critérios de julgamento não contemplam todos os aspectos para execução imediata.
Um exemplo permite compreender a questão. Suponha-se uma licitação em que o critério de julgamento seja a técnica e preço. Caberá adotar a solução tradicional, prevista na Lei 8.666: duas propostas, cada uma em invólucro lacrado distinto, iniciando-se o julgamento pela proposta técnica? Não há resposta sobre o tema na Lei 14.133. Trata-se de matéria a ser objeto de regulamentação – ou de disciplina por meio do edital.
Por outro lado, como será processado o pregão? E como será promovido o sistema de registro de preços? As perguntas são inúmeras e não têm resposta na Lei.
Lembre-se que uma parcela significativa das normas da Lei 14.133 já constava da Lei 12.462/2011 (Lei do RDC). Essa Lei do RDC foi regulamentada pelo Dec. Fed. 7.581/2011 (alterado pelo Dec. Fed. 8.251/2014). O Regulamento do RDC apresenta 114 artigos. E se recorde que a Lei do RDC não tratou de habilitação. Portanto, o Regulamento versa preponderantemente sobre os procedimentos licitatórios propriamente ditos.
É verdade que muitos dispositivos do Regulamento do RDC foram incorporados na própria Lei 14.133. No entanto, o referido diploma não contempla a disciplina necessária para superar dúvidas e incertezas no tocante às soluções a serem implementadas.
Será imprescindível regulamentar os seus dispositivos e isso poderá demorar muitos meses.
Nesse ponto, alguém poderia indagar o motivo pelo qual não foi adotada a solução mais simples: estabelecer que a Lei 14.133 entraria em vigor depois de decorrido um prazo razoável (dois anos?) de sua publicação. Isso permitiria que o PNCP estivesse plenamente operacionalizado e que todos os regulamentos tivessem sido editados.
Há duas possíveis respostas para essa indagação.
A primeira consiste em que estabelecer uma vacatio legis de dois anos seria um incentivo a que a Lei 14.133 não fosse levada a sério. Como costuma ocorrer em tais situações, o mais provável seria que ninguém se preocupasse com o diploma até 45 dias antes da data prevista para o início de vigência. Então, haveria um movimento nacional pela postergação da vigência. E, assim, a questão seria “empurrada com a barriga” por muito tempo. Ao estabelecer a sua vigência imediata, a Lei 14.133 exclui essa prática e obriga todos nós a tomá-la seriamente.
A segunda resposta possível é a vaidade do governante. Remeter a aplicação de uma nova Lei de Licitações para dois anos implica reduzir a amplitude do discurso político.
Seja qual tenha sido o motivo da escolha, a Lei 14.133 exige o nosso estudo e a preparação para aproveitarmos as boas oportunidades que ela oferece para aperfeiçoamento da ação estatal.