1. O critério de inexequibilidade para obras e serviços de engenharia
O art. 59, inc. III, da Lei 14.133 (nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos) determina a desclassificação das propostas com preços inexequíveis. Para obras e serviços de engenharia, o art. 59, § 4º, especifica que “serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”.
A conjugação dessas regras poderia conduzir, em tese, a uma presunção absoluta de inexequibilidade. Isso significaria a necessidade de desclassificação de toda e qualquer proposta com valor inferior a 75% do orçamento estimado.
No entanto, acórdãos recentes do TCU adotaram interpretação diversa. Tem prevalecido o entendimento de que o critério da Lei 14.133 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade, tal como ocorria no âmbito da Lei 8.666.¹
2. A disciplina da Lei 8.666 e a Súmula 262 do TCU
A Lei 8.666 (revogada pela Lei 14.133) tratava do tema no art. 48. Determinava a desclassificação das propostas “com preços manifestamente inexeqüiveis, assim considerados aqueles que não venham a ter demonstrada sua viabilidade através de documentação que comprove que os custos dos insumos são coerentes com os de mercado e que os coeficientes de produtividade são compatíveis com a execução do objeto do contrato, condições estas necessariamente especificadas no ato convocatório da licitação” (inc. II).
Ainda, estabelecia que seriam “manifestamente inexeqüíveis, no caso de licitações de menor preço para obras e serviços de engenharia, as propostas cujos valores sejam inferiores a 70% (setenta por cento) do menor dos seguintes valores: a) média aritmética dos valores das propostas superiores a 50% (cinqüenta por cento) do valor orçado pela administração, ou b) valor orçado pela administração” (§ 1º).
A interpretação desses dispositivos pelo TCU conduziu à edição da Súmula 262, nos seguintes termos: “O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta”.
Esse entendimento também pode ser aplicado à disciplina da Lei 14.133. As novas regras admitem que o licitante demonstre a exequibilidade de sua proposta, ainda que o valor ofertado seja inferior a 75% do orçamento estimado pela Administração. Essa tem sido a interpretação preponderante no âmbito do TCU, conforme será visto adiante.
3. O poder-dever de realizar diligências para aferir a (in)exequibilidade
A Lei 14.133 não se limita a prever um critério objetivo para aferição da inexequibilidade das propostas referentes a obras e serviços de engenharia (art. 59, § 4º). Também contempla regras que atribuem à Administração o poder-dever de promover diligências relacionadas à avaliação das propostas – inclusive na hipótese do referido § 4º.
O inc. IV do art. 59 determina a desclassificação das propostas que “não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração”. E o § 2º do art. 59 acrescenta que “A Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo”.
Essas duas regras confirmam que a presunção de inexequibilidade prevista no § 4º do art. 59 é relativa. A oferta de preço inferior a 75% do orçamento estimado não implica a desclassificação automática da proposta. Apenas atribui ao licitante o ônus de comprovar a exequibilidade do valor proposto. A diligência deve ser realizada justamente para aferir se a presunção legal de inexequibilidade pode ser afastada.
De modo genérico, isso envolve a solicitação de esclarecimentos e documentos adicionais sobre a formação do preço. O licitante pode demonstrar, por exemplo, que dispõe de condições favoráveis para a execução adequada do objeto contratual mesmo com preço inferior a 75% do orçamento estimado.
Pode inclusive configurar-se uma situação em que diversas propostas sejam inferiores a 75% do orçamento estimado. Isso sugerirá a inadequação do próprio orçamento em relação aos preços de mercado, possivelmente em decorrência de algum equívoco ou omissão da Administração na fase preparatória da licitação. Em tais casos, será ainda mais reforçada a necessidade de promover diligências junto aos licitantes.
4. O entendimento do TCU sobre a disciplina da Lei 14.133
A maior parte da jurisprudência do TCU sobre o tema foi proferida ainda sob a égide da Lei 8.666. Mas acórdãos recentes analisaram a questão já com enfoque nas regras da Lei 14.133.
4.1. Acórdão 2.198/2023 (Plenário, rel. Min. Antonio Anastasia, j. 25.10.2023)
Ao examinar a nova disciplina, o TCU inicialmente adotou entendimento contrário àquele consubstanciado na Súmula 262.
O Acórdão 2.198/2023, do Plenário, apreciou representação que questionava a desclassificação de lance em pregão regido pela Lei 14.133. O objeto do certame consistia na “Contratação de empresa de engenharia para prestação de serviços de Recuperação do Sombral Graziela Barroso – 1ª etapa/fase 1: recuperação do muro externo, no Sítio Roberto Burle Marx”.
Consta da decisão que o valor ofertado era inferior ao mínimo de 75% definido para lances exequíveis. Segundo a representante, a desclassificação teria sido ilegal porque a Administração não promoveu diligência para aferir concretamente se o valor seria ou não exequível.
Todavia, o acórdão considerou que, diante do inc. III e do § 4º do art. 59 da Lei 14.133, “não há que se cogitar da realização de diligências para aferir a inexequibilidade, pois o lance abaixo daquele percentual de 75% já é identificado pela própria Lei como inexequível, devendo a proposta ser desclassificada”.
Cabe destacar que o acórdão não fez referência às regras do inc. IV e do § 2º do art. 59 da Lei 14.133. Tampouco aludiu ao entendimento da Súmula 262 do TCU. Trata-se de decisão isolada – o que se confirma a partir da análise de acórdãos posteriores, proferidos em 2024.
4.2. Acórdão 465/2024 (Plenário, rel. Min. Augusto Sherman, j. 20.3.2024)
O Acórdão 465/2024, do Plenário, examinou atos praticados em concorrência regida pela Lei 14.133, voltada à contratação de serviço especial de engenharia para a “realização de planejamento, levantamentos, ensaios e a elaboração dos projetos executivos de engenharia, arquitetura e documentações legais, referentes à construção do Campus definitivo da Unidade Acadêmica de Belo Jardim (UABJ) da UFRPE”.
As dezessete primeiras colocadas (das trinta e uma empresas participantes) tiveram suas propostas desclassificadas por suposta inexequibilidade, ante a oferta de valores inferiores a 75% do orçamento estimado pela Administração.
A representação formulada ao TCU questionava a ausência de realização de diligências para aferir concretamente a (in)exequibilidade. No entanto, antes mesmo da intervenção do TCU, a Administração retomou a fase de julgamento das propostas e promoveu as referidas diligências. Como a irregularidade foi sanada, a representação foi considerada prejudicada por perda de objeto.
De todo modo, o acórdão teceu considerações relevantes sobre a questão jurídica envolvida. Destacou a necessidade de uma interpretação sistemática dos §§ 2º e 4º do art. 59, de modo a garantir aos licitantes a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de suas propostas. Segundo a decisão:
“(…) eventual valor muito inferior ao que foi previsto pela Administração no orçamento-base da licitação não é, por si só, indicador absoluto de inexequibilidade da proposta, haja vista, por exemplo, a possibilidade de que referido valor orçado contenha equívocos ou a licitante consiga demonstrar sua capacidade de executar o objeto no valor por ela proposto”.
O acórdão também constatou, no caso examinado, uma diferença substancial entre o valor mínimo aceitável (75% do orçamento estimado) e a mediana das propostas desclassificadas. A partir disso, destacou a possibilidade de o próprio orçamento-base da licitação ser incompatível com os preços de mercado:
“No caso concreto, verifico que, além do grande número de desclassificações por suposta inexequibilidade, ocorreu também uma diferença substancial de quase 27% entre o valor mínimo aceitável arbitrado pela UFRPE e a mediana das propostas desclassificadas. Referida diferença chama a atenção e induz o questionamento de que é possível que o orçamento-base da licitação esteja superavaliado”.
Além disso, o acórdão ressaltou que a oferta de valor mais reduzido em licitação pode decorrer de uma estratégia empresarial legítima, que não necessariamente implica a inexequibilidade da proposta:
“(…) o Tribunal, em sua jurisprudência (Acórdãos 325/2007, 3092/2014, ambos do Plenário), apresentou exemplos de estratégias comerciais que podem levar uma empresa a reduzir sua margem de remuneração incluída em sua proposta de preços, a saber: (i) interesses próprios da empresa em quebrar barreiras impostas pelos concorrentes no mercado; ou (ii) incrementar seu portfólio; ou ainda (iii) formar um novo fluxo de caixa advindo do contrato.
Em outras palavras, ainda que a proposta da licitante tenha sido inferior ao patamar de 75% do valor orçado pela Administração, a empresa pode ter motivos comerciais legítimos para fazê-lo, cabendo à Administração perquiri-los, dando oportunidade ao licitante para demonstrar a exequibilidade do valor proposto”.
A partir desses fundamentos, o TCU reafirmou o entendimento da Súmula 262, reconhecendo que idêntico raciocínio pode ser aplicado à Lei 14.133:
“Considerando ser esse um possível leading case em que se debate o tema, julgo oportuno que, em acréscimo à proposta da unidade técnica, se dê ciência à UFRPE que o critério definido no art. 59, § 4º, da Lei 14.133/2021 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de sua proposta, nos termos do art. 59, § 2º, da mesma lei”.
Desde então, outros acórdãos têm adotado essa mesma solução.
4.3. Acórdão 2.088/2024 (2ª Câmara, rel. Min. Augusto Nardes, j. 2.4.2024)
O Acórdão 2.088/2024, da 2ª Câmara, julgou representação formulada contra atos praticados em concorrência regida pela Lei 14.133, destinada à “contratação de empresa especializada em engenharia e arquitetura para a elaboração de projetos executivos, em plataforma BIM (Building Information Modeling), da construção da nova Sede da Polícia Federal no Amazonas”.
A representação questionava a desclassificação das propostas mais vantajosas, por suposta inexequibilidade, sem a realização de diligências. Consta do acórdão que essa solução teria conduzido a Administração a aceitar uma proposta cerca de 34% mais cara que a de menor valor.
Mais uma vez, o TCU consignou que o critério legal conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade, cabendo à Administração conceder aos licitantes a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de suas propostas:
“8. Reafirmo que a Administração incorre em risco elevado de não contratar a proposta mais vantajosa, ao desclassificar uma proposta na licitação com base nesse critério de forma absoluta, sem a realização de diligência, com vistas a dar oportunidade às licitantes de demonstrar a viabilidade de sua oferta, quando a diferença se mostra irrisória considerando o valor estimado da licitação, como no caso presente”.
Determinou-se, então, o retorno do certame à fase de análise das propostas de preços para a realização de diligências, “em atenção à Sumula TCU 262 e ao princípio da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública”.
4.4. Acórdão 803/2024 (Plenário, rel. Min. Benjamin Zymler, j. 24.4.2024)
O Acórdão 803/2024, do Plenário, analisou suposta divergência entre o art. 59, § 4º, da Lei 14.133 e o art. 28, parágrafo único, da Instrução Normativa Seges/MGI 2, de 7 de fevereiro de 2023, que dispõe sobre a licitação pelo critério de julgamento por técnica e preço, na forma eletrônica, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional (disponível aqui).
O referido dispositivo da IN prevê que, se houver a oferta de valor inferior a 75% do orçamento estimado, “o agente de contratação ou a comissão de contratação, quando o substituir, poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, em atenção ao disposto no § 2º do art. 59 da Lei nº 14.133, de 2021”. Segundo a representação formulada ao TCU, essa regra infringiria o critério supostamente absoluto de inexequibilidade previsto no art. 59, § 4º, da Lei 14.133.
O acórdão destacou que, rigorosamente, não seria o caso de conhecer da representação, tendo em vista a sua incompatibilidade com a realização de controle in abstrato de atos normativos pelo TCU. Mas optou-se por avançar ao exame de mérito, em caráter excepcional, em virtude da relevância da matéria.
O acórdão apontou que uma interpretação inflexível do art. 59, § 4º, da Lei 14.133 poderia implicar o empate de diversos certames. Afinal, os licitantes seriam conduzidos a ofertar lances com o desconto máximo admitido (25% em relação ao orçamento estimado), de modo que não haveria uma efetiva disputa voltada à obtenção da proposta mais vantajosa. Surgiria, assim, a necessidade de aplicação de critérios de desempate (art. 60 da Lei 14.133). Segundo o TCU, tal circunstância resultaria inclusive na inconstitucionalidade do referido § 4º, “por afastar o próprio dever de licitar, previsto no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, bem como por violar o princípio da economicidade”.
Além disso, o acórdão reconheceu que não é papel do Estado exercer “uma espécie de curatela dos licitantes” mediante a imposição de parâmetro absoluto de inexequibilidade de preços. Afinal, há uma evidente impossibilidade de a Administração Pública considerar, por meio de um critério legal objetivo, todas as nuances da atividade econômica. Confira-se:
“Ao tutelar a lucratividade dos proponentes e a exequibilidade das propostas, o Poder Público interfere indevidamente na seara privada criando restrições indevidas para o setor produtivo praticar os preços que bem entender e, por conseguinte, também arcar com as consequências de suas decisões.
25. Ainda que fosse possível estabelecer em lei regras realmente eficazes para analisar a exequibilidade, tais regras não poderiam captar diferentes tipos de decisão empresarial. A título de exemplo, cito o caso do particular que oferta preço inexequível porque deseja obter um determinado atestado de capacidade técnica para conseguir entrar em um novo mercado. É o custo de aquisição de um novo cliente, que muitas vezes o setor produtivo está disposto a incorrer”.
O acórdão também destacou a relação da inexequibilidade de preços com o chamado “risco moral”. Trata-se da “situação em que uma das partes em uma transação toma decisões mais arriscadas porque sabe que não terá que arcar com todas as consequências negativas dessas decisões”.
Em termos concretos, isso significa que o licitante opta pela oferta de preço reduzido já com a perspectiva de que, no futuro, “contará com a apresentação de pleitos ilegais de aditamento contratual” ou até mesmo “com o simples abandono do contrato após a execução de suas parcelas mais vantajosas”. Tal conduta pode estar relacionada, ainda, a uma tentativa de obtenção de lucro através de atrasos na execução contratual e de redução da qualidade dos produtos e serviços, a fim de compensar o preço diminuto ofertado na licitação.
A solução para mitigar o aludido “risco moral” não é a simples previsão de um critério inflexível de inexequibilidade, alheio às particularidades do setor produtivo. Em vez disso, segundo o TCU, cabe à Administração Pública “implementar procedimentos rigorosos de avaliação, incluindo análise detalhada dos preços, da capacidade técnica e financeira dos licitantes”, de modo a garantir a integridade dos certames e a execução adequada dos respectivos contratos.
Assim, o TCU julgou a representação improcedente, afastando a alegação de incompatibilidade da IN Seges/MGI 2/2023 com o art. 59, § 4º, da Lei 14.133.
5. Considerações finais
A análise de acórdãos recentes do TCU demonstra que o entendimento firmado na vigência da Lei 8.666 e consagrado na Súmula 262 também vem sendo aplicado na interpretação da Lei 14.133.
Tem prevalecido a concepção de que o critério do art. 59, § 4º, da Lei 14.133 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços. Ou seja, a Administração detém o poder-dever de conceder ao licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de sua proposta.
Esse poder-dever decorre do inc. IV e do § 2º do art. 59. Mas é também consequência de uma presunção relativa preexistente, atinente à própria conformidade do orçamento estimado em relação aos preços de mercado.
Tal se passa porque as particularidades da atividade econômica nem sempre são corretamente apreendidas pela Administração na fase preparatória da licitação. Essa assimetria de informações repercute no orçamento estimado. Logo, não cabe presumir que o referido orçamento se constitui em parâmetro absoluto e infalível para a avaliação das propostas.
Enfim, cabe à Administração aferir a exequibilidade por meio de diligências junto aos licitantes, de modo transparente e com respeito ao contraditório de todos os interessados.
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¹ O tema foi objeto de artigo publicado na edição nº 166 deste Informativo Eletrônico, em dezembro de 2020 (acesse aqui). Na ocasião, a Lei 14.133 ainda não havia sido sancionada.