Informativo Eletrônico - Edição 215 - Janeiro / 2025

O CHAMAMENTO PÚBLICO PARA EXPLORAÇÃO INDIRETA DE FERROVIAS: RESOLUÇÃO 6.058/2024-ANTT

Monica Bandeira de Mello Lefèvre

1. Introdução

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) editou, em 19 de dezembro de 2024, a Resolução 6.058, que disciplina o procedimento administrativo de chamamento público para exploração indireta de ferrovias federais mediante outorga de autorização.

O ato normativo busca conferir maior clareza, segurança jurídica e eficiência ao processo de outorga, alinhando-se às diretrizes do Marco Legal das Ferrovias (Lei 14.273/2021) e às políticas públicas de incentivo à participação privada no desenvolvimento do setor ferroviário. 

2. A exploração de ferrovias por meio de autorização

A Lei 14.273/2021 instituiu duas modalidades de outorga para exploração das ferrovias em território nacional: as tradicionais concessões de serviço público passam a coexistir com as autorizações ferroviárias.¹

Inaugura-se um regime que confere maior autonomia e flexibilidade ao particular para implantar e operar a infraestrutura ferroviária que será por ele gerida. O autorizatário assume a integralidade dos riscos relativos ao empreendimento, sujeitando-se a uma regulação estatal menos intensa, por não estar vinculado às obrigações e garantias típicas das contratações submetidas ao regime jurídico de direito público. 

A outorga de autorização pressupõe a formulação de requerimento dirigido ao ente regulador (nos termos do art. 25 da Lei 14.273/2021) ou a participação do particular interessado em processo de chamamento público (previsto no art. 26 e seguintes).

A Resolução 6.058/2024 destina-se precisamente a regulamentar o procedimento a ser seguido pelo regulador ferroviário para a identificação e seleção do particular mediante o referido processo de chamamento. 

3. O chamamento público

O processo de chamamento público pode ser instaurado pelo Poder Executivo diante da necessidade de se desenvolver uma nova ferrovia ou de se conferir adequada destinação a um trecho ferroviário que não está sendo regularmente operado pela atual delegatária.

Embora não se trate propriamente de uma imposição legal, há que se considerar que as autoridades públicas têm o dever de observar a dimensão finalística das competências que lhes são legalmente atribuídas. Isto é: devem pautar a sua atuação em prol da realização dos interesses coletivos.

No cenário atual, as políticas públicas do setor recomendam – se é que não determinam – a adoção de providências voltadas ao melhor aproveitamento da infraestrutura ferroviária existente. É razoável supor que a ociosidade de determinado trecho contribua menos para o atingimento dos fins públicos buscados pelo Estado do que a outorga de autorização a um particular apto a promover a reativação da respectiva malha e a sua efetiva operação. 

Em todo caso, o chamamento público deve ser realizado nas hipóteses em que se revelar indispensável para atender as diretrizes do planejamento setorial.

O instituto da autorização foi incorporado à Lei 14.273/2021 com o objetivo de incrementar a competitividade e atrair investimentos privados. Portanto, se for viável conceder a outorga mediante a análise e deferimento do pedido formulado pelo particular interessado, sem que haja a necessidade de realização de um processo público de seleção (que demanda tempo e é dotado de certa complexidade), essa solução deve ser prestigiada.

3.1 As hipóteses de cabimento do chamamento público

Ao tratar das situações em que o chamamento público será cabível, a Resolução 6.058/2024 reforça as regras constantes do art. 26 da Lei 14.273/2021.

O referido processo tem por objetivo identificar a existência de potenciais interessados na obtenção de autorização para a exploração de ferrovias (i) não implantadas, (ii) ociosas ou (iii) em processo de devolução ou desativação.

Em linhas gerais, as ferrovias não implantadas abrangem traçados cuja operação é tida como relevante para a consecução dos interesses coletivos e políticas setoriais, mas que ainda não são objeto de exploração.

Consideram-se trechos ociosos aqueles inseridos em concessões nas quais se verifica: a existência de bens reversíveis não explorados; a ausência de tráfego comercial nos últimos dois anos (equiparada à circulação de até dois trens de carga ou passageiros por semestre); ou o descumprimento injustificado das metas e indicadores de desempenho contratualmente estabelecidos, também nos últimos dois anos. As situações previstas na primeira e terceira hipóteses ainda dependem de regulamentação por parte da ANTT. 

Por fim, a desativação e a devolução de trechos ferroviários abrangem os casos em que as concessionárias buscam devolver parte da malha que lhes foi outorgada, em razão da ausência de tráfego comercial nos quatro anos anteriores ao pedido ou por constatar que a sua operação se relevou antieconômica no bojo do contrato firmado com a atual operadora. Uma vez cumpridos os requisitos para o deferimento do pedido, nos quais se incluem o pagamento de indenização pela concessionária e a apresentação de estudo técnico que indique alternativas para a destinação dos bens, o traçado poderá ser cindido e outorgado a um novo particular. 

3.2 A cisão de trechos ferroviários

Se houver interessado na exploração de trechos ociosos ou em processo de devolução/desativação, será promovida a cisão da malha operadora originária em favor da nova autorização a ser outorgada, sem prejuízo de eventuais ressarcimentos devidos pela concessionária ao Poder Concedente e da necessidade de celebração de aditivo contratual.

Os valores a serem ressarcidos pela concessionária devem ser pagos no momento da cisão ou ao final da concessão, a depender das determinações do Ministério de Transportes, e a sua eficácia dependerá da publicação do extrato que formaliza a contratação do autorizatário. Além disso, enquanto não for editado regulamento específico, aplicar-se-á ao procedimento de cisão a Resolução 5.945/2021, no que couber, e os princípios de direito administrativo. 

3.3 O edital de chamamento público

O edital de chamamento público deverá indicar, no mínimo, as seguintes informações: (i) detalhamento da ferrovia a ser autorizada (pontos de origem e destino, conexões com outros modais e características técnicas da operação), (ii) o atual perfil de transportes, com a indicação do histórico e de eventuais estimativas de produção ou de transporte de passageiros; (iii) os bens e contratos relativos à infraestrutura a ser outorgada, (iv) a situação de processos de cisão de trechos, (v) as quantias vinculadas a eventuais aportes públicos e o valor mínimo exigido pela outorga, bem como (vi) a capacidade de transporte da malha. 

Também devem constar do ato convocatório as condições de participação e habilitação, os critérios de seleção e desempate, o prazo mínimo (de cem dias) para a entrega de propostas, as sanções aplicáveis e os requisitos necessários para a homologação do resultado.

Estudos e dados técnicos obtidos pela Administração Pública podem integrar o edital, assim como eventuais levantamentos pesquisas e projetos que vierem a ser disponibilizados pela ANTT com finalidade meramente informativa e sem qualquer caráter vinculativo. 

A ANTT poderá exigir a apresentação de garantias e de integralização de capital mínimo, compatível com o porte do empreendimento. 

Em relação ao valor da outorga, estabeleceu-se que os estudos necessários à sua definição poderão ser elaborados de forma simplificada e com base em valores paramétricos ou referenciais. Na eventualidade de os estudos indicarem um valor negativo, a outorga contemplará a estipulação de um valor simbólico de R$ 1,00 (um real). 

3.4 O conceito de “área de influência” e o exercício do direito de preferência

A atual redação da Lei 14.273/2021, com a promulgação das partes vetadas, prevê o direito de preferência da concessionária, nos primeiros cinco anos de vigência do referido diploma, caso a ferrovia pretendida ou oferecida esteja localizada dentro da área de influência da outorga vigente (conforme o art. 67). 

A Resolução 6.058/2024 procurou conceituar o que se entende por “área de influência”.  

Estabeleceu-se que os processos de chamamento público cujo edital vier a ser divulgado até o dia 6 de fevereiro de 2027, devem verificar a distância existente entre a ferrovia a ser outorgada e a concessão ferroviária já existente, nos seguintes termos: 

Art. 4º (…) 
§ 1º Para os fins desta Resolução, considera-se a ferrovia a ser outorgada como situada na área influência de uma concessão ferroviária já existente, quando adentrar na área compreendida em um raio, contado do eixo da ferrovia concedida, de:
I – 100 km (cem quilômetros), para segmentos ferroviários com distância de até 300 km (trezentos quilômetros) do porto de destino mais próximo;
II – 200 km (duzentos quilômetros), para segmentos ferroviários com distância superior a 300 km (trezentos quilômetros) e de até 600 km (seiscentos quilômetros) do porto de destino mais próximo; ou
III – 450 km (quatrocentos e cinquenta quilômetros), para segmentos ferroviários com distância superior a 600 km (seiscentos quilômetros) do porto de destino mais próximo.
§ 2º Para os fins dos incisos I a III do § 1º, considera-se:
I – segmento ferroviário: extensão de linha férrea delimitada por estações ou pátios consecutivos:
a) de cruzamento;
b) limítrofes da ferrovia;
c) que permitem a mudança de direção; ou
d) que permitem a interconexão com outras malhas.
II – distância: a menor distância linear aproximada entre o ponto médio do segmento ferroviário e o porto de destino mais próximo; e
III – porto de destino mais próximo: o porto de menor distância em relação ao ponto médio do segmento ferroviário, e que seja objeto de originação ou destinação de cargas pela concessão ferroviária já existente.

Caso se constate que a ferrovia outorgada está inserida na área de influência de uma de uma concessão já existente, a respectiva concessionária poderá exercer o seu direito de preferência, salvo se o trecho objeto do chamamento público estiver ocioso ou em processo de desativação/devolução². 

A concessionária será notificada para, no prazo de quinze dias, manifestar o seu interesse em celebrar o contrato de autorização, nas mesmas condições apresentadas pelo particular cujas propostas tiverem sido aprovadas no âmbito do chamamento público realizado. 

Caso a referida delegatária deixe de se manifestar ou expresse o seu eventual desinteresse, estará configurada a decadência do direito de preferência para obtenção de autorização. Por outro lado, a manifestação de interesse da concessionária importará na assunção da obrigação de apresentar as garantias exigidas pelo edital do chamamento público, devendo também demonstrar o cumprimento das condições de habilitação e qualificação nele estipuladas. 

3.5 A participação no chamamento público

Podem participar do chamamento público, de forma isolada ou em consórcio, pessoas jurídicas que não possuam os impedimentos descritos na Resolução 6.058/2024 e no ato convocatório. Esses impedimentos incluem, essencialmente, a prática de condutas inidôneas ou crimes ambientais, a vigência de sanções administrativas e o envolvimento de pessoas vinculadas ao particular interessado com a Agência Reguladora, o Ministério dos Transportes ou outros órgãos responsáveis pela estruturação da outorga.

Adicionalmente, quando o processo de chamamento abranger trechos ociosos ou que tenham sido objeto de desativação ou devolução, é vedada a participação das operadoras originárias ou de partes a elas relacionadas (como sociedades controladoras, coligadas ou controladas pela antiga delegatária). 

Também não podem participar do processo empresas que tenham contribuído, direta ou indiretamente, para o custeio ou elaboração dos elementos estruturantes do chamamento público, tais como estudos, projetos e análises. 

A critério da ANTT, o edital poderá incluir regras específicas para a participação de empresas estrangeiras, entidades de previdência complementar ou fundos de investimento, desde que cumpram os requisitos estabelecidos no edital.  

3.6 A apresentação e análise das propostas

Os interessados em participar do chamamento público devem apresentar proposta à ANTT, no prazo e nas condições estipulados no edital. 

A proposta deve ser acompanhada de documentação que comprove a habilitação jurídica, fiscal, social, trabalhista, técnica e econômico-financeira, bem como da garantia da proposta, quando exigida. Além disso, os proponentes devem declarar expressamente que não incorrem em nenhuma das hipóteses de vedação à participação previstas nas normas aplicáveis (v. item 3.5). 

Em seguida, as propostas apresentadas devem ser avaliadas pela Comissão de Outorga, que verificará a adequação da documentação frente às exigências do ato convocatório.    

Caso necessário, a Comissão poderá solicitar esclarecimentos ou documentos complementares ao proponente, desde que as dúvidas ou incompletudes por ela constatadas não digam respeito a vícios insanáveis. Documentos falsos, ilegíveis ou considerados inaptos serão recusados, podendo resultar na desclassificação imediata e na aplicação de sanções administrativas. 

Se houver apenas uma proposta válida, a Comissão verificará a garantia de proposta (quando exigida) e a documentação de habilitação do proponente, submetendo o resultado do chamamento público à homologação pela Diretoria da ANTT. Já no caso de múltiplas propostas, será realizado um processo seletivo público, cujo critério de seleção será a maior oferta de pagamento pela outorga.

Caso o proponente não seja aprovado, a Comissão de Outorga publicará o resultado e os motivos da não aprovação no sítio eletrônico da ANTT, abrindo prazo para recurso administrativo, nos termos do edital. Decorrido o prazo recursal sem alteração da decisão, o processo será arquivado.

4. A celebração do contrato de autorização

A outorga de ferrovia objeto do chamamento público será formalizada por meio de contrato de autorização. 

O instrumento deve indicar o objeto e prazo de vigência da outorga (que pode ser de 25 a 99 anos e é prorrogável por períodos sucessivos), os cronogramas a serem observados (para os investimentos, desapropriações e obtenção de licenças), bem como aspectos atinentes à relação do autorizatário com usuários e autoridades públicas (envolvendo a delimitação dos direitos e deveres, as hipóteses de sancionamento e as causas de extinção do contrato). Dentre as cláusulas obrigatórias, inserem-se também aquelas relativas à especificação das condições técnico-operacionais para compartilhamento de infraestrutura.

5. Considerações finais

A Resolução 6.058/2024 representa mais um passo em prol do amadurecimento regulatório do setor ferroviário brasileiro. 

Ao disciplinar o processo de chamamento público, a norma delineia conceitos relevantes e assegura a procedimentalização das atividades administrativas necessárias à outorga de autorizações, contribuindo para uma maior transparência na busca pela expansão e otimização da infraestrutura ferroviária do país. 

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¹ Os diferentes regimes de outorga foram abordados em edições anteriores deste periódico. Confiram-se, a propósito, os artigos publicados por Rafael Wallbach Schwind, por Mônica Bandeira de Mello e por esta mesma autora em coautoria com Victor Hugo Pavoni Vanelli (conforme Informativos n.os 175, 185 e 212).

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² As críticas a essa solução já foram destacadas pela autora em outra ocasião: “Considerando que o objetivo da regra [que estabelece o direito de preferência] é evitar eventuais impactos das autorizações frente às concessões vigentes, a análise deveria (em tese) ir além da verificação de questões meramente formais, geográficas. Se o projeto apresentado pelo particular interessado em obter a autorização não for capaz de repercutir de forma significativa na outorga já existente, o direito de preferência deveria ser afastado e a autorização concedida.”

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Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Monica Bandeira de Mello Lefèvre
Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.