Informativo Eletrônico - Edição 189 - Novembro / 2022

O JULGAMENTO DA ADI 6649 E DA ADPF 695 E O TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS NO MBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

João Pedro Lima de Vasconcellos

1. Introdução

Em 15.09.2022, o STF julgou conjuntamente o mérito da ADI 6649 e da  ADPF 695, que questionaram a constitucionalidade formal e material do  Decreto 10.046/2019, que regulamenta a Lei Geral de Proteção de Dados  (LGPD) e a Lei de Acesso à Informação (LAI). 

Segundo postulado, o Decreto 10.046/2019, que dispõe sobre a  governança no tratamento de dados pessoais no âmbito da Administração  Pública e institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de  Governança de Dados, teria violado dispositivos da Constituição Federal (arts.  1º, III, 5°, caput, X e 84, IV e VI, “a”) e da própria LGPD (arts. 6º, 7º, 21 e 23).

O STF julgou o Decreto parcialmente inconstitucional, conferindo-lhe  interpretação conforme à Constituição, condicionada à observância de  determinados parâmetros interpretativos.

O presente artigo comenta esse julgamento, apontando as  inconstitucionalidades verificadas e a criatividade do STF na proposição de  uma solução alternativa à controvérsia. 

2. O Decreto 10.046/2019 e suas inconstitucionalidades

O Decreto 10.046/2019 regulamentou a LGPD (Lei 13.709/2018) e a LAI  (Lei 12.527/2011). Estabeleceu normas e diretrizes para o compartilhamento de  dados entre os órgãos e as entidades da administração pública federal direta,  autárquica e fundacional e os demais poderes. 

Conforme indicado no art. 1º, a norma tem por finalidade simplificar a  oferta de serviços públicos; orientar e otimizar a formulação, a implementação,  a avaliação e o monitoramento de políticas públicas; possibilitar a análise das  condições de acesso e manutenção de benefícios sociais e fiscais; promover a  melhoria da qualidade e da fidedignidade dos dados custodiados pela administração pública federal; e aumentar a qualidade e a eficiência das  operações internas da administração pública federal. 

Em última análise, o Decreto fixou o regime jurídico para o tratamento de  dados pessoais no âmbito da Administração Pública, enfrentando o desafio de  harmonizar a privacidade inerente ao regime de proteção de dados com a  publicidade própria do regime jurídico de direito administrativo.

Entretanto, incorreu em vícios formais e materiais de constitucionalidade  que, apesar de terem sido reconhecidos pelo STF, não implicaram a sua  anulação.

2.1. Inconstitucionalidade formal

O STF reconheceu a existência de vício de constitucionalidade formal no  Decreto, que introduziu alterações no ordenamento jurídico com força  normativa própria. Com isso, extrapolou as prerrogativas do Presidente da  República, previstas no art. 84, IV e VI, “a”, da Constituição.

2.2. Inconstitucionalidades materiais 

O STF também reconheceu a inconstitucionalidade material do Decreto  em razão de violações aos princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art.  1º, III), da liberdade (CF, art. 5º, caput), da intimidade (CF, art. 5º, X) e ao  regime jurídico de tutela de dados pessoais, que exige motivação, publicidade  e proporcionalidade no seu tratamento pela Administração Pública (LGPD, arts.  6º, 7º, 21 e 23).

3. Solução do STF: interpretação conforme à Constituição 

Não obstante, em vez de simplesmente anular o Decreto (do que  acabaria resultando vácuo regulamentar em área sensível para o gestor  público), o STF assumiu postura alternativa. 

Seguindo o voto do Ministro Relator Gilmar Mendes, o STF conferiu  interpretação conforme ao Decreto, evitando conflitos com o Poder Executivo  federal e preservando o programa normativo do Decreto 10.046/2019 já  alinhado com a Constituição. 

A interpretação conforme à Constituição é mecanismo de controle de  constitucionalidade que produz solução intermediária ao se desvincular da  fórmula binária constitucionalidade-inconstitucionalidade.

Segundo ensinamento doutrinário do Ministro Luís Roberto Barroso, a  interpretação conforme significa a declaração parcial de inconstitucionalidade,  sem redução do texto, com a exclusão de uma possível interpretação da norma  e a afirmação de uma interpretação diversa, compatível com a Constituição.1

Assim, o STF declarou o Decreto parcialmente inconstitucional,  estabelecendo, com base na própria LGPD, parâmetros interpretativos às suas disposições, a serem observados quando da sua aplicação, tais como os  princípios da motivação, da proporcionalidade, da necessidade e da  publicidade (LGPD, arts. 6º, 7º, 21, 23 e 42). 

Ainda, julgou inconstitucional a composição do Comitê Central de  Governança de Dados, prevista no art. 22, em vista da antijuridicidade dos  critérios fixados para a escolha de seus membros, todos representantes da  Administração Pública federal, nomeados a partir de procedimentos  considerados desprovidos de abertura democrática.

De forma a “torná-lo constitucional”, o STF fixou prazo de 60 dias para  que o Poder Executivo (i) atribua ao Comitê um perfil independente e plural,  aberto à participação efetiva de representantes de outras instituições democráticas; e (ii) confira aos seus integrantes garantias mínimas contra  influências indevidas. 

4. Considerações Finais 

A interpretação conforme à Constituição, técnica intermediária  desvinculada da fórmula binária constitucionalidade-inconstitucionalidade, abriu  caminho para a solução harmoniosa da controvérsia envolvendo o Decreto  10.046/2019.

Tratou-se de instrumento para fazer prevalecer a força adjudicatória da  Constituição e o elemento positivo do controle de constitucionalidade, de modo  a afastar eventuais resultados inconstitucionais. . 

Observados os parâmetros interpretativos fixados pelo STF, o Decreto  10.046/2019 é considerado constitucional e passa a regulamentar a LGPD e a  LAI no compartilhamento de dados pessoais entre órgãos e entidades da  Administração Pública. 

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1 Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito  Constitucional no Brasil. Revista Interesse Público, Belo Horizonte, ano 7, n. 33, set./out. 2005.

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João Pedro Lima de Vasconcellos
Acadêmico de Direito da UnB. Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
João Pedro Lima de Vasconcellos
Acadêmico de Direito da UnB. Estagiário da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.